Aula de 9 de Novembro de 2006
Espinosa foi um pensador muito influenciado por Descartes, não obstante não se considerar um cartesiano. Discorda com ele num ponto fulcral: o dualismo substancial. Para Espinosa, a substância é una (monismo substancial), no que antecipa a filosofia moderna idealista. Concebe também Deus como um ser imanente ao universo. Faz portanto a ponte entre a filosofia moderna clássica e a filosofia moderna idealista, sendo considerado por Hegel um ponto capital desse período filosófico.
A filosofia espinosista está permanentemente em diálogo com a metafísica cartesiana, procurando dar solução a problemas que se encontram em Descartes. Um dos pontos em que estão em desacordo é a questão da liberdade. Enquanto que para Descartes a liberdade era a ausência de constrangimento, o poder ir por um caminho ou por outro, Espinosa tem uma perspectiva necessitarista da liberdade: tudo o que existe, existe por necessidade da natureza. Deus enquanto criador é livre (no dizer de Espinosa) porquanto a necessidade a que obedece é a da sua própria natureza. Já os entes individuais não são livres porque são coagidos por uma necessidade que lhes é exterior, a de Deus. Assim é dito na proposição VII: "Diz-se livre o que existe exclusivamente pela necessidade da sua natureza e por si só é determinado a agir; e dir-se-á necessário, ou mais propriamente, coagido, o que é determinado por outra coisa a existir e a operar de certa e determinada maneira". Só Deus se auto-determina, e portanto os entes singulares são determinados pela natureza divina. Enquanto para Descartes Deus criava o mundo sem ficar vinculado a ele, para Espinosa, Deus e as leis da natureza já não se distinguem. Deus não governa o mundo estando separado dele, não o conhece como sendo uma coisa diferente de si. A perspectiva de Descartes é que Deus, por ser infinito, não é limitado por coisa alguma, e está inclusive acima da verdade e da falsidade, pois é causa delas. Já em Espinosa, pensa-se que Deus "cria" o mundo pela necessidade da sua natureza, e que não o poderia ter criado de outra forma (Deus e a natureza que dele decorre são, no limite, uma e a mesma coisa). A "liberdade" que Espinosa atribui à essência de Deus é somente «a determinação que tem por causa a própria essência» (Joaquim de Carvalho, em nota à proposição VII). Por outras palavras, é livre o ser que pode realizar plenamente o que está em potência na sua natureza, de tal forma que a potência deixa de o ser para se concretizar em acto.
Outra questão que Espinosa levanta é o conhecimento do que é a substância. Há obviamente pressupostos de raiz aristotélica e escolástica ao usar-se o termo "substância": aquilo que é suporte da existência de uma coisa, permanecendo o mesmo perante a mudança, e contém a essência de algo. Todavia o sentido que Espinosa dá ao termo não se restringe ao seu uso clássico, pois embora se mantenha a essência dessa acepção da palavra (pelo que a usa e não uma qualquer outra), altera o seu conceito e definição.
Descartes tinha usado este termo para se referir às duas res, a res cogitans e a res extensa. Há portanto, para Descartes, uma substância pensante e uma substância corpórea, cada uma com as suas leis próprias. Mas fica o problema de como é que se processa a interacção entre ambas. Malebranche tentou resolvê-lo na doutrina conhecida como "ocasionalismo", em que sustenta que não há relação possível entre as realidades físicas e as realidades espirituais, sendo necessária a intervenção de Deus como causa de uma articulação entre as duas. Na metafísica cartesiana, uma substância só pode ter um único atributo: a res cogitans é pensante porquanto pensa, se fosse extensa ou parasse de pensar já não o seria. Isto equivale a dizer que é o atributo pensamento que determina a substância que pensa (res cogitans). Em Espinosa passa-se, como vamos ver, precisamente o contrário: todos os atributos pertencem à mesma substância, e esta não é determinada pelos seus atributos, pois é-lhes anterior lógica e ontologicamente. É antes a condição da possibilidade dos atributos, que são ditos da e na substância. É que a substância é algo "que existe por si e por si é concebido" (Def. III). Tem portanto autonomia ontológica, não é dita de nenhuma outra coisa. Pensamento e extensão não são duas substâncias distintas, mas atributos da substância infinita, que é una e incriada. A argumentação que prova que a substância seja apenas uma é, sucintamente, a seguinte:
Segundo a proposição V, «na natureza não podem ser dadas duas ou mais substâncias com a mesma propriedade ou atributo». A Prop. VIII, que diz que «toda a substância é necessariamente infinita»: então a existirem duas substâncias teriam que se limitar uma à outra, o que só seria possível se partilhassem a mesma natureza. Consequentemente teríamos duas substâncias de um mesmo atributo, o que é absurdo. Seriam apenas uma e a mesma. Por outro lado, se Deus é infinito, e pertence à sua essência a existência (prova da existência de Deus pela sua essência, Prop. VII), possui todos os atributos, e uma substância diversa teria que ser explicada por algum dos seus atributos, o que levaria à mesma situação absurda (Prop. XIV e sua demonstração). Pelo que existe apenas uma substância e é Deus.
Os atributos, nomeadamente o pensamento e a extensão, são apenas aquilo que o que «o intelecto percebe da substância como constituindo a essência dela» (Def. IV), ou seja, a aparência dual do que é em si mesmo uno. Deus é também, portanto, extensão. Os atributos são aquilo que «o intelecto percebe da substância como constituindo a essência dela» (Def. III). Na verdade a totalidade dos atributos são para Espinosa equivalentes à substância, pois são a sua expressão e a sua potência criadora posta em acto e já não a substância considerada apenas em si mesma. Os atributos são a manifestação inteligível do uno da substância, de que nós percebemos sob duas formas, como pensamento e extensão; e, na minha interpretação, a possibilidade de existirem infinitos atributos diz respeito a outras formas de expressão da substância inalcançáveis pelo nosso entendimento finito. Exprimem, portanto, essências infinitas da substância, mas infinitas apenas no seu género, isto é, um atributo concreto, sendo infinito, não é limitado por algo da sua natureza, mas não exprime a totalidade da essência de Deus. Não me parece, no entanto, que devam entender-se os atributos, kantianamente, como a existência fenomenal da substância, ou seja, o ser da substância tal como ele aparece ao nosso modo próprio de representar. É que dos atributos é dito ainda que é por eles que se produzem os seres individuais, sendo natureza naturante (conceito que verei mais à frente).
Do que se procurou explicar antes e da equação Deus = Natureza («Deus sive natura»"), chegamos à concepção de um Deus imanente, que não é criador de uma realidade fora dele, que transcende, mas antes é coexistente com o que cria, mundo e seres existentes. Os entes singulares, nomeadamente nós, seres humanos individuais, não possuem substancialidade e só existem em Deus. Não faz parte da sua essência a existência, pois as condições que propiciam a sua existência podem mudar e eles deixam de existir. A causa da sua existência não está em si mas em Deus, pela natureza do qual vieram a existir e continuam existindo. Só Deus, por ser causa de si mesmo, tem por essência o existir. Pensamento e extensão não são substâncias, pois não têm em si o fundamento da sua existência, não são causa de si mesmos, mas sim atributos perceptíveis da substância, infinitos em si mesmos também.
Os indivíduos só têm pensamentos próprios na medida em que o meu pensamento pessoal é uma afecção do atributo pensamento. Ao nível do atributo pensamento pode ocorrer uma diferenciação que permite a existência de diversos seres pensantes. Assim, o pensamento em si é infinito, mas o objecto do pensamento, o pensado, pode ser finito, constituindo-se em modos diversos de pensamento. O pensamento de um indivíduo serve de limite ao pensamento de outro, e com a existência extensa passa-se a mesma coisa. Os atributos são a existência da substância enquanto natureza naturante, que é o seu princípio activo e a sua pura razão de ser, enquanto que a existência modal, onde se modificam os atributos e existem os seres individuais, são o que se poderia dizer o que resulta da necessidade criativa da natureza de Deus, sendo natureza naturada que no entanto não se separa de Deus nem pode existir sem ele (ver Escólio da Prop. XXIX). É ao nível modal da natureza naturada que existe o pensamento humano e tudo aquilo que podemos perceber pelos sentidos, que são entes que não têm em si próprios substancialidade. Aqui acontece a mudança e a diferença entre os entes, todavia sem que a substância deixe de ser eterna, imutável e infinita, e cada ente singular é apenas um modo de existência da substância divina.
A filosofia espinosista está permanentemente em diálogo com a metafísica cartesiana, procurando dar solução a problemas que se encontram em Descartes. Um dos pontos em que estão em desacordo é a questão da liberdade. Enquanto que para Descartes a liberdade era a ausência de constrangimento, o poder ir por um caminho ou por outro, Espinosa tem uma perspectiva necessitarista da liberdade: tudo o que existe, existe por necessidade da natureza. Deus enquanto criador é livre (no dizer de Espinosa) porquanto a necessidade a que obedece é a da sua própria natureza. Já os entes individuais não são livres porque são coagidos por uma necessidade que lhes é exterior, a de Deus. Assim é dito na proposição VII: "Diz-se livre o que existe exclusivamente pela necessidade da sua natureza e por si só é determinado a agir; e dir-se-á necessário, ou mais propriamente, coagido, o que é determinado por outra coisa a existir e a operar de certa e determinada maneira". Só Deus se auto-determina, e portanto os entes singulares são determinados pela natureza divina. Enquanto para Descartes Deus criava o mundo sem ficar vinculado a ele, para Espinosa, Deus e as leis da natureza já não se distinguem. Deus não governa o mundo estando separado dele, não o conhece como sendo uma coisa diferente de si. A perspectiva de Descartes é que Deus, por ser infinito, não é limitado por coisa alguma, e está inclusive acima da verdade e da falsidade, pois é causa delas. Já em Espinosa, pensa-se que Deus "cria" o mundo pela necessidade da sua natureza, e que não o poderia ter criado de outra forma (Deus e a natureza que dele decorre são, no limite, uma e a mesma coisa). A "liberdade" que Espinosa atribui à essência de Deus é somente «a determinação que tem por causa a própria essência» (Joaquim de Carvalho, em nota à proposição VII). Por outras palavras, é livre o ser que pode realizar plenamente o que está em potência na sua natureza, de tal forma que a potência deixa de o ser para se concretizar em acto.
Outra questão que Espinosa levanta é o conhecimento do que é a substância. Há obviamente pressupostos de raiz aristotélica e escolástica ao usar-se o termo "substância": aquilo que é suporte da existência de uma coisa, permanecendo o mesmo perante a mudança, e contém a essência de algo. Todavia o sentido que Espinosa dá ao termo não se restringe ao seu uso clássico, pois embora se mantenha a essência dessa acepção da palavra (pelo que a usa e não uma qualquer outra), altera o seu conceito e definição.
Descartes tinha usado este termo para se referir às duas res, a res cogitans e a res extensa. Há portanto, para Descartes, uma substância pensante e uma substância corpórea, cada uma com as suas leis próprias. Mas fica o problema de como é que se processa a interacção entre ambas. Malebranche tentou resolvê-lo na doutrina conhecida como "ocasionalismo", em que sustenta que não há relação possível entre as realidades físicas e as realidades espirituais, sendo necessária a intervenção de Deus como causa de uma articulação entre as duas. Na metafísica cartesiana, uma substância só pode ter um único atributo: a res cogitans é pensante porquanto pensa, se fosse extensa ou parasse de pensar já não o seria. Isto equivale a dizer que é o atributo pensamento que determina a substância que pensa (res cogitans). Em Espinosa passa-se, como vamos ver, precisamente o contrário: todos os atributos pertencem à mesma substância, e esta não é determinada pelos seus atributos, pois é-lhes anterior lógica e ontologicamente. É antes a condição da possibilidade dos atributos, que são ditos da e na substância. É que a substância é algo "que existe por si e por si é concebido" (Def. III). Tem portanto autonomia ontológica, não é dita de nenhuma outra coisa. Pensamento e extensão não são duas substâncias distintas, mas atributos da substância infinita, que é una e incriada. A argumentação que prova que a substância seja apenas uma é, sucintamente, a seguinte:
Segundo a proposição V, «na natureza não podem ser dadas duas ou mais substâncias com a mesma propriedade ou atributo». A Prop. VIII, que diz que «toda a substância é necessariamente infinita»: então a existirem duas substâncias teriam que se limitar uma à outra, o que só seria possível se partilhassem a mesma natureza. Consequentemente teríamos duas substâncias de um mesmo atributo, o que é absurdo. Seriam apenas uma e a mesma. Por outro lado, se Deus é infinito, e pertence à sua essência a existência (prova da existência de Deus pela sua essência, Prop. VII), possui todos os atributos, e uma substância diversa teria que ser explicada por algum dos seus atributos, o que levaria à mesma situação absurda (Prop. XIV e sua demonstração). Pelo que existe apenas uma substância e é Deus.
Os atributos, nomeadamente o pensamento e a extensão, são apenas aquilo que o que «o intelecto percebe da substância como constituindo a essência dela» (Def. IV), ou seja, a aparência dual do que é em si mesmo uno. Deus é também, portanto, extensão. Os atributos são aquilo que «o intelecto percebe da substância como constituindo a essência dela» (Def. III). Na verdade a totalidade dos atributos são para Espinosa equivalentes à substância, pois são a sua expressão e a sua potência criadora posta em acto e já não a substância considerada apenas em si mesma. Os atributos são a manifestação inteligível do uno da substância, de que nós percebemos sob duas formas, como pensamento e extensão; e, na minha interpretação, a possibilidade de existirem infinitos atributos diz respeito a outras formas de expressão da substância inalcançáveis pelo nosso entendimento finito. Exprimem, portanto, essências infinitas da substância, mas infinitas apenas no seu género, isto é, um atributo concreto, sendo infinito, não é limitado por algo da sua natureza, mas não exprime a totalidade da essência de Deus. Não me parece, no entanto, que devam entender-se os atributos, kantianamente, como a existência fenomenal da substância, ou seja, o ser da substância tal como ele aparece ao nosso modo próprio de representar. É que dos atributos é dito ainda que é por eles que se produzem os seres individuais, sendo natureza naturante (conceito que verei mais à frente).
Do que se procurou explicar antes e da equação Deus = Natureza («Deus sive natura»"), chegamos à concepção de um Deus imanente, que não é criador de uma realidade fora dele, que transcende, mas antes é coexistente com o que cria, mundo e seres existentes. Os entes singulares, nomeadamente nós, seres humanos individuais, não possuem substancialidade e só existem em Deus. Não faz parte da sua essência a existência, pois as condições que propiciam a sua existência podem mudar e eles deixam de existir. A causa da sua existência não está em si mas em Deus, pela natureza do qual vieram a existir e continuam existindo. Só Deus, por ser causa de si mesmo, tem por essência o existir. Pensamento e extensão não são substâncias, pois não têm em si o fundamento da sua existência, não são causa de si mesmos, mas sim atributos perceptíveis da substância, infinitos em si mesmos também.
Os indivíduos só têm pensamentos próprios na medida em que o meu pensamento pessoal é uma afecção do atributo pensamento. Ao nível do atributo pensamento pode ocorrer uma diferenciação que permite a existência de diversos seres pensantes. Assim, o pensamento em si é infinito, mas o objecto do pensamento, o pensado, pode ser finito, constituindo-se em modos diversos de pensamento. O pensamento de um indivíduo serve de limite ao pensamento de outro, e com a existência extensa passa-se a mesma coisa. Os atributos são a existência da substância enquanto natureza naturante, que é o seu princípio activo e a sua pura razão de ser, enquanto que a existência modal, onde se modificam os atributos e existem os seres individuais, são o que se poderia dizer o que resulta da necessidade criativa da natureza de Deus, sendo natureza naturada que no entanto não se separa de Deus nem pode existir sem ele (ver Escólio da Prop. XXIX). É ao nível modal da natureza naturada que existe o pensamento humano e tudo aquilo que podemos perceber pelos sentidos, que são entes que não têm em si próprios substancialidade. Aqui acontece a mudança e a diferença entre os entes, todavia sem que a substância deixe de ser eterna, imutável e infinita, e cada ente singular é apenas um modo de existência da substância divina.
relator: Pedro Santos
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