Introdução à Filosofia Moderna

Instituto de Estudos Filosóficos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

Saturday, December 23, 2006

Aula de 9 de Novembro de 2006

Espinosa foi um pensador muito influenciado por Descartes, não obstante não se considerar um cartesiano. Discorda com ele num ponto fulcral: o dualismo substancial. Para Espinosa, a substância é una (monismo substancial), no que antecipa a filosofia moderna idealista. Concebe também Deus como um ser imanente ao universo. Faz portanto a ponte entre a filosofia moderna clássica e a filosofia moderna idealista, sendo considerado por Hegel um ponto capital desse período filosófico.
A filosofia espinosista está permanentemente em diálogo com a metafísica cartesiana, procurando dar solução a problemas que se encontram em Descartes. Um dos pontos em que estão em desacordo é a questão da liberdade. Enquanto que para Descartes a liberdade era a ausência de constrangimento, o poder ir por um caminho ou por outro, Espinosa tem uma perspectiva necessitarista da liberdade: tudo o que existe, existe por necessidade da natureza. Deus enquanto criador é livre (no dizer de Espinosa) porquanto a necessidade a que obedece é a da sua própria natureza. Já os entes individuais não são livres porque são coagidos por uma necessidade que lhes é exterior, a de Deus. Assim é dito na proposição VII: "Diz-se livre o que existe exclusivamente pela necessidade da sua natureza e por si só é determinado a agir; e dir-se-á necessário, ou mais propriamente, coagido, o que é determinado por outra coisa a existir e a operar de certa e determinada maneira". Só Deus se auto-determina, e portanto os entes singulares são determinados pela natureza divina. Enquanto para Descartes Deus criava o mundo sem ficar vinculado a ele, para Espinosa, Deus e as leis da natureza já não se distinguem. Deus não governa o mundo estando separado dele, não o conhece como sendo uma coisa diferente de si. A perspectiva de Descartes é que Deus, por ser infinito, não é limitado por coisa alguma, e está inclusive acima da verdade e da falsidade, pois é causa delas. Já em Espinosa, pensa-se que Deus "cria" o mundo pela necessidade da sua natureza, e que não o poderia ter criado de outra forma (Deus e a natureza que dele decorre são, no limite, uma e a mesma coisa). A "liberdade" que Espinosa atribui à essência de Deus é somente «a determinação que tem por causa a própria essência» (Joaquim de Carvalho, em nota à proposição VII). Por outras palavras, é livre o ser que pode realizar plenamente o que está em potência na sua natureza, de tal forma que a potência deixa de o ser para se concretizar em acto.
Outra questão que Espinosa levanta é o conhecimento do que é a substância. Há obviamente pressupostos de raiz aristotélica e escolástica ao usar-se o termo "substância": aquilo que é suporte da existência de uma coisa, permanecendo o mesmo perante a mudança, e contém a essência de algo. Todavia o sentido que Espinosa dá ao termo não se restringe ao seu uso clássico, pois embora se mantenha a essência dessa acepção da palavra (pelo que a usa e não uma qualquer outra), altera o seu conceito e definição.
Descartes tinha usado este termo para se referir às duas res, a res cogitans e a res extensa. Há portanto, para Descartes, uma substância pensante e uma substância corpórea, cada uma com as suas leis próprias. Mas fica o problema de como é que se processa a interacção entre ambas. Malebranche tentou resolvê-lo na doutrina conhecida como "ocasionalismo", em que sustenta que não há relação possível entre as realidades físicas e as realidades espirituais, sendo necessária a intervenção de Deus como causa de uma articulação entre as duas. Na metafísica cartesiana, uma substância só pode ter um único atributo: a res cogitans é pensante porquanto pensa, se fosse extensa ou parasse de pensar já não o seria. Isto equivale a dizer que é o atributo pensamento que determina a substância que pensa (res cogitans). Em Espinosa passa-se, como vamos ver, precisamente o contrário: todos os atributos pertencem à mesma substância, e esta não é determinada pelos seus atributos, pois é-lhes anterior lógica e ontologicamente. É antes a condição da possibilidade dos atributos, que são ditos da e na substância. É que a substância é algo "que existe por si e por si é concebido" (Def. III). Tem portanto autonomia ontológica, não é dita de nenhuma outra coisa. Pensamento e extensão não são duas substâncias distintas, mas atributos da substância infinita, que é una e incriada. A argumentação que prova que a substância seja apenas uma é, sucintamente, a seguinte:
Segundo a proposição V, «na natureza não podem ser dadas duas ou mais substâncias com a mesma propriedade ou atributo». A Prop. VIII, que diz que «toda a substância é necessariamente infinita»: então a existirem duas substâncias teriam que se limitar uma à outra, o que só seria possível se partilhassem a mesma natureza. Consequentemente teríamos duas substâncias de um mesmo atributo, o que é absurdo. Seriam apenas uma e a mesma. Por outro lado, se Deus é infinito, e pertence à sua essência a existência (prova da existência de Deus pela sua essência, Prop. VII), possui todos os atributos, e uma substância diversa teria que ser explicada por algum dos seus atributos, o que levaria à mesma situação absurda (Prop. XIV e sua demonstração). Pelo que existe apenas uma substância e é Deus.
Os atributos, nomeadamente o pensamento e a extensão, são apenas aquilo que o que «o intelecto percebe da substância como constituindo a essência dela» (Def. IV), ou seja, a aparência dual do que é em si mesmo uno. Deus é também, portanto, extensão. Os atributos são aquilo que «o intelecto percebe da substância como constituindo a essência dela» (Def. III). Na verdade a totalidade dos atributos são para Espinosa equivalentes à substância, pois são a sua expressão e a sua potência criadora posta em acto e já não a substância considerada apenas em si mesma. Os atributos são a manifestação inteligível do uno da substância, de que nós percebemos sob duas formas, como pensamento e extensão; e, na minha interpretação, a possibilidade de existirem infinitos atributos diz respeito a outras formas de expressão da substância inalcançáveis pelo nosso entendimento finito. Exprimem, portanto, essências infinitas da substância, mas infinitas apenas no seu género, isto é, um atributo concreto, sendo infinito, não é limitado por algo da sua natureza, mas não exprime a totalidade da essência de Deus. Não me parece, no entanto, que devam entender-se os atributos, kantianamente, como a existência fenomenal da substância, ou seja, o ser da substância tal como ele aparece ao nosso modo próprio de representar. É que dos atributos é dito ainda que é por eles que se produzem os seres individuais, sendo natureza naturante (conceito que verei mais à frente).
Do que se procurou explicar antes e da equação Deus = Natureza («Deus sive natura»"), chegamos à concepção de um Deus imanente, que não é criador de uma realidade fora dele, que transcende, mas antes é coexistente com o que cria, mundo e seres existentes. Os entes singulares, nomeadamente nós, seres humanos individuais, não possuem substancialidade e só existem em Deus. Não faz parte da sua essência a existência, pois as condições que propiciam a sua existência podem mudar e eles deixam de existir. A causa da sua existência não está em si mas em Deus, pela natureza do qual vieram a existir e continuam existindo. Só Deus, por ser causa de si mesmo, tem por essência o existir. Pensamento e extensão não são substâncias, pois não têm em si o fundamento da sua existência, não são causa de si mesmos, mas sim atributos perceptíveis da substância, infinitos em si mesmos também.
Os indivíduos só têm pensamentos próprios na medida em que o meu pensamento pessoal é uma afecção do atributo pensamento. Ao nível do atributo pensamento pode ocorrer uma diferenciação que permite a existência de diversos seres pensantes. Assim, o pensamento em si é infinito, mas o objecto do pensamento, o pensado, pode ser finito, constituindo-se em modos diversos de pensamento. O pensamento de um indivíduo serve de limite ao pensamento de outro, e com a existência extensa passa-se a mesma coisa. Os atributos são a existência da substância enquanto natureza naturante, que é o seu princípio activo e a sua pura razão de ser, enquanto que a existência modal, onde se modificam os atributos e existem os seres individuais, são o que se poderia dizer o que resulta da necessidade criativa da natureza de Deus, sendo natureza naturada que no entanto não se separa de Deus nem pode existir sem ele (ver Escólio da Prop. XXIX). É ao nível modal da natureza naturada que existe o pensamento humano e tudo aquilo que podemos perceber pelos sentidos, que são entes que não têm em si próprios substancialidade. Aqui acontece a mudança e a diferença entre os entes, todavia sem que a substância deixe de ser eterna, imutável e infinita, e cada ente singular é apenas um modo de existência da substância divina.
relator: Pedro Santos

Aula 11-12

A Ética de Espinosa começa por demonstrar algumas definições que preparam a de Deus, ou seja, prepara a definição de causa de si, de substância, de atributo e de modo. A estas se acrescentarão a definição de liberdade e eternidade.
Partindo do axioma 1 que se segue ao enunciado «Tudo o que existe, existe em si ou noutra coisa», é necessária uma explicação. Diz-se noutra coisa (in alio) tudo o que não pode existir de outro modo que não seja como atributo de um sujeito, a título de qualidade ou de quantidade, de maneira de ser em geral; é dito (in se) o que só pode ser sujeito e nunca atributo, o que não é uma maneira de ser, mas propriamente um ser (um homem, uma pedra e não a cor ou o movimento).
Espinosa reservou o nome de atributo para o que Descartes considerou como o atributo principal; os outros atributos ou maneiras de ser, qualidades ou afecções, Espinosa denominou modos. Ao contrário de Descartes, que considera a extensão e o pensamento como os atributos de duas espécies de substâncias (as substâncias pensantes ou espíritos, as substâncias extensas ou os corpos), Espinosa considera a extensão e o pensamento como dois atributos da única substância. A noção de substância só se aplica propriamente a Deus, ao ser que existe por si próprio (ens a se). No entanto, como entre coisas criadas há motivo para distinguir os seres e as maneiras de ser, então designa-se ordinariamente sob o nome de substância, em oposição ao atributo ou acidente, o qual só pode existir num sujeito (in alio), o próprio sujeito, que não existe noutra coisa, mas em si (in se). Assim sendo, a noção "espinosista" de substância resulta da rejeição desta ambiguidade, ou seja, para Espinosa não existe ens in se, ou ser em si, mas só o ser por si (ens a se). Como vimos em Espinosa:
«Por substância, entendo o que existe em si e por si é concebido (quod in se est per se concipitur); quer dizer aquilo cujo conceito não carece de conceito de uma outra coisa, a partir do qual deva ser formado» (Ética, I, def. III). Neste sentido, a substância é concebida por Espinosa como o absoluto, o incondicionado, o que não depende de mais nada; o conceito de substância reduz-se ao de causa sui que Descartes aplicou a Deus e que constitui o objecto da primeira definição da Ética : « Por causa de si entendo aquilo cuja essência envolve a existência; ou por outras palavras, aquilo cuja natureza não pode ser concebida senão como existente». Neste seguimento se Deus é concebido como absoluto ou causa de si, resulta daqui que Deus existe necessariamente. Então, como se deve conceber Deus?
«Por Deus, diz Espinosa, entendo um ser absolutamente infinito, quer dizer, uma substância constituída por uma infinidade de atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita». Surge daqui uma das questões mais difíceis do "espinosismo": como se define o atributo para Espinosa?
«Por atributo, diz ele, entendo o que o entendimento percebe de uma substância como constituindo a essência dela». Esta definição pode explicar-se pela consideração do atributo principal em Descartes. A extensão, atributo principal da substância corporal, faz-nos conhecer a sua essência. Por isto, podemos dizer que o corpo é uma substância extensa e que a extensão constitui a natureza ou a essência dos corpos. Do mesmo modo, (em Espinosa), a substância é concebida por si, mas não é conhecida por nós, percebida pelo nosso entendimento, a não ser nos seus atributos. Então, que atributos são?
De tudo o que podemos conhecer, só a extensão e o pensamento (que são considerados em Descartes como atributos principais, um da substância corporal e outro da substância espiritual), podem ser para Espinosa atributos da substância. No entanto, o atributo distingue-se dos modos ou afecções da substância em virtude de ser concebido por si «cada um dos atributos de uma mesma substância, diz ele, deve ser concebido por si». Assim sendo, os corpos definem-se pela figura e pelo movimento, que são modos da extensão, mas a extensão não se pode conceber a partir de uma coisa diferente dela, logo deve ser concebida por si. Da mesma maneira, a ideia é um modo, uma determinação do pensamento, mas o pensamento é um atributo também concebido por si. Neste sentido, se é concebido por si, o atributo distingue-se dos modos e assemelha-se à substância, que é em si e concebida por si. Apesar disto, não se identifica com ela porque não subsiste em si.
Pela definição da substância resulta que existe necessariamente e por consequência é eterna e infinita, pois o que é absolutamente é "sem limites" (I 8, escólio 1). Neste sentido, se o atributo é concebido por si é também infinito: os corpos determinam-se na extensão, têm limites na extensão, mas a própria extensão não pode ter limites; o mesmo acontece com o pensamento. Assim, a extensão e o pensamento são infinitos (cada um no seu género), mas não são absolutamente infinitos. Ou seja, a extensão não é o pensamento e o pensamento não é a extensão; exteriormente a cada um há outra coisa diferente e por isso nenhum deles é absolutamente infinito, nenhum equivale à substância. (Ética, I, Def. 6, explicação (…) ao que somente é infinito no seu género podemos negar uma infinidade de atributos; mas ao que é absolutamente infinito, pertence à sua essência tudo o que exprime a essência e não envolve qualquer negação).
É por isto que, para Espinosa, a extensão e o pensamento não são substâncias (como pensava Descartes), mas atributos da substância única, infinita. É neste sentido que Deus é o ser absolutamente infinito, no qual está o pensamento infinito e a extensão infinita que são ambos atributos infinitos. Sendo Deus concebido como infinito, uma infinidade de atributos infinitos se devem encontrar n'Ele (I 10, Escólio). Assim, não seria absolutamente infinito se não tivesse outros atributos além da extensão e do pensamento, mas só o podemos conhecer por "estes dois" (ESPINOSA, carta 64). Assim sendo, temos de considerar que o nosso entendimento finito não poderia perceber todos os atributos da substância infinita.
Neste sentido, ou seja, da própria definição de Deus, segue-se que Ele existe. Se dissesse que Deus não existe, não o estaria a conceber como substância, pois o existir pertence ao que é substância. Assim, se Deus é substância, existe necessariamente e por isso é infinito (na existência necessária e absoluta não pode haver limites; por isto, Deus é o ser absolutamente infinito). Se considerarmos o carácter infinito, surge outra prova da existência de Deus ou, mais precisamente, a necessidade da sua existência aparece sob outro aspecto, ou seja, aparece como uma conclusão lógica, mas como efeito da sua natureza infinita. Deste modo, Deus existe porque se é concebido como infinito nada se pode opor à sua existência, impedindo-O de existir (Ética, I 11, Dem.; escólio).
Perante a consideração da infinitude, apesar de ser deduzida da definição de substância e aparecer como consequência lógica da essência, a prova ontológica toma um novo aspecto que "foge" à objecção de formalismo.
Recapitulando, Deus existe necessariamente, pois tem um poder infinito de existir, existe porque Ele é causa de si. Definindo logicamente, causa de si é aquilo cuja essência envolve a existência (é uma essência donde se tira a existência; então não é só um conceito formal, mas um puro objecto de pensamento).
Analisando o conceito de causa de si, é evidente que se Deus é concebido como o ser necessário, a sua essência deve ser concebida como potência, de maneira que a potência de Deus é a sua própria essência. Se desta essência deduzimos a sua existência, então a essência não se pode reduzir a um objecto de pensamento. Deste modo, a essência é potência, não no sentido de possibilidade, mas no sentido de poder actuante. Como dizia Espinosa: essentia actuosa (Ética, II 3, escólio). Se a essência se concebe deste modo é claro que não se reduz a objecto ideal, "um possível no entendimento". Se o argumento ontológico é válido, é porque "(…) em Deus a essência não se distingue da existência, posto que n'Ele , sem a existência, a essência não poderia ser concebida".Continuando, os seres particulares, ou "os modos", podem-se conceber sem ser, pois são concebidos como determinações de um atributo infinito. Por exemplo, um círculo pode-se conceber sem existir desde que tenha a ideia "necessária" da extensão. Aqui põe-se um problema: como se concebia Deus ou a substância se não existissem? Como se formaria o conceito de absoluto se o absoluto não se impusesse ao meu entendimento como uma exigência transcendente?
Perante isto, dir-se-ia que negar que uma realidade corresponde ao conceito de haver um princípio absoluto, onde se fundam o seu sentido e valor, será negar toda a verdade e, então, renunciar a toda a inteligibilidade. Assim, a existência de Deus, ou da substância, assim como a sua essência, impõem-se ao nosso espírito como uma verdade eterna (I 8, escólio 2,20; cor.1)
Deve entender-se que a essência de Deus não é como a do círculo, uma determinação particular de um atributo infinito, a que corresponde uma existência possível; exprime a própria existência infinita. Então, a existência de Deus e a sua essência são uma e mesma coisa, por isso se diz que o Deus de Espinosa é como o do Êxodo (III 14).
Será necessário ter em atenção que quando Espinosa nos diz que a existência de Deus, tal como a sua essência, é uma verdade eterna, devemos entender a eternidade de Deus de um modo diferente da das essências imutáveis (às quais se relacionam as verdades necessárias da geometria). Deve então compreender-se que para lá da eternidade das essências, ou dos possíveis no entendimento, a eternidade de Deus se concebe como a existência absoluta. ("Esta" não é só o ser objectivo e intemporal da verdade, nem "tão – pouco", a factiori, uma duração sem começo nem fim.) (Ética I Def. 8, explicação).
Assim a eternidade de Deus entende-se como a energia inesgotável de um princípio transcendente, donde derivam o ser e a verdade e onde se funda o seu acordo.
Avançando para as coisas singulares e vendo a sua essência eterna e a sua existência temporária, começo por exemplificar como Deus, sendo uma substância única, não pode existir nem se conceber nenhuma substância ( I 14). Daqui segue-se que tudo o que existe só pode existir n'Ele: nada pode existir nem ser concebido sem ele (I 15). É preciso ver que as coisas singulares são "só" modos através dos quais os atributos divinos se exprimem de uma forma determinada. Do mesmo modo, os corpos são apenas determinações particulares da extensão, atributo divino, da mesma maneira que os espíritos são modos do pensamento infinito. Isto não quer dizer que as coisas criadas sejam identificadas com Deus, pois dizer que Este é extenso não implica que seja corporal. A extensão enquanto atributo divino é infinita e indivisível, mas a extensão dividida em corpo é a extensão representada na imaginação, ou seja, a extensão diversificada pelo movimento e repouso, que são um modo infinito, ou melhor, um efeito imediato da potência infinita que se exprime no atributo. Neste sentido, é por intermédio do movimento e repouso que podemos distinguir os corpos, que são modos finitos. Deste modo, as coisas criadas, ou seja, os espíritos e os corpos, não se identificam com a substância de que são os modos.
Deus, sendo causa de tudo, é substância única e todas as coisas que produz estão em si: " Ele é causa imanente de todas as coisas, e não (causa) transitiva" ( I 18 , 24). Talvez para continuar a explorar o tema seja necessária a leitura da carta 12 que Espinosa escreve a Luís Meyer. Daqui se entenderá melhor que a existência de Deus não é a existência empírica, mas a essentia ou ipsum esse (Ética, II Def. 5 ).
Assim se entende que as coisas singulares não são causa de si, são causadas por Deus; não pertencem à Natureza naturante (Deus e seus atributos), mas à Natureza naturada. Talvez aqui se faça uma distinção:
Natureza naturante: aquela que é criadora, o que existe em si e é concebida por si).
Natureza naturada: tudo aquilo que resulta da natureza de Deus.
Deus é causa eficiente, não só da sua existência, mas também da sua essência, mas tendo as coisas singulares uma essência (na teologia tradicional) significa que elas são concebidas no entendimento de Deus antes de serem produzidas pela sua vontade. Perante isto, Deus tem uma vontade livre que origina a criação de uma escolha entre possíveis; no entanto, esta representação de Deus é rejeitada por Espinosa como antropomórfica. Neste sentido, as coisas que Deus produz derivam de si e unicamente em virtude das leis da sua natureza. Então, Deus é livre porque nada exterior a Ele O constrange (Ética, I 16, 33, 17) e ( I 29, escólio). Assim, as coisas singulares têm uma essência no sentido em que não são combinações fortuitas. Deve entender-se que Espinosa exclui a finalidade intencional e a Providência divina, mas não a organização da natureza. Por exemplo, os corpos distinguem-se uns dos outros através do movimento e do repouso, na medida em que se conservam através das alterações que sofrem, assegura a cada um uma natureza permanente e uma individualidade. Deste modo, o universo é constituído por uma hierarquia de formas e a natureza aparece como um organismo (Ética, II, escólio depois do lema 7, antes dos postulados e depois da proposição 14). A esta organização permanente se designa como facies totius universi (carta 64), ou seja, é um modo intermediário entre o movimento e repouso, modo infinito imediato e as coisas singulares, (estas que são modos finitos, sujeitos de mudança e cuja existência é limitada no tempo, mas a essência é compreendida na organização eterna do universo), são modos eternos dos atributos divinos.
Espinosa não exclui o entendimento divino, mas recusa-se a considerá-lo como anterior às coisas, ou seja, tomar as coisas como produções do entendimento. Por outro lado, também não é posterior às coisas, tal como seria o nosso entendimento segundo a opinião corrente. Assim "ele" está em simultaneidade com as coisas, ou seja, da natureza eterna e infinita de Deus resulta que as ideias se deduzem umas das outras no entendimento segundo a mesma ordem e com a mesma necessidade com que as coisas se produzem na natureza ( I 17, escólio; II 3, escólio, 6, escólio).
Os modos do pensamento e os modos da extensão encadeiam-se segundo a ordem, formando duas séries rigorosamente paralelas (II 7). Esta correspondência é precisa para que o conhecimento, que se constitui segundo as exigências intrínsecas e as leis necessárias do pensamento, não seja uma construção abstracta, mas nos descubra a realidade.
Por isto, o entendimento divino, da mesma maneira que a organização eterna da natureza, é apenas um modo onde estão compreendidas as ideias das coisas, mas as ideias não são simples possíveis, ou seja, são essências reais, modos finitos. No "espinosismo", as ideias são tão reais como eternas; então, há uma ideia eterna do indivíduo Espinosa que não é só um objecto eterno de conhecimento, mas Espinosa eternamente conhecedor, um modo eterno do pensar, compreendido na eternidade do entendimento divino, ao qual corresponde um modo eterno da extensão, de que Espinosa era (em vida) a manifestação visível e temporal.
O corpo é eterno como a alma, sendo a alma e o corpo uma e a mesma coisa, um mesmo indivíduo, uma mesma essência real, que se exprime em dois atributos diferentes (III 2, escólio). Aqui deve notar-se uma diferenciação, pois se o corpo (que é singular), considerado na sua essência é eterno, a alma, (em contrapartida, durante a existência temporal) é constituída por ideias que são eternas, ideias que correspondem às modificações corporais e às vicissitudes da vida empírica. Deste modo, parece que as coisas singulares, os modos finitos, têm uma dupla existência, uma existência empírica, uma duração que é uma sucessão de fenómenos, e o ser eterno de uma essência onde se exprime (de uma determinada maneira) o poder infinito que se manifesta nos atributos divinos (Ética, V 29, escólio). Por isto, Deus é causa (a um tempo) do ser eterno dos modos e da sua existência na duração, apesar desta causalidade dupla se manifestar de duas maneiras diferentes. Assim, os modos finitos que são considerados na sua essência deduzem-se da natureza infinita de Deus, ou seja, através dos modos infinitos imediatos (ex.: o movimento e o repouso) forma-se em cada atributo um modo infinito mediato no interior do qual os modos finitos se definem "hierarquicamente". Deste modo, da necessidade de uma natureza divina, procede através de uma causalidade uma «série das coisas fixas e eternas». Ainda assim, os modos finitos que são eternamente compreendidos no entendimento divino e na eternidade, não têm (na experiência e história) existência necessária, mas é possível que "um dado homem" definido na sua essência individual, exista ou não neste momento ( II Axioma 1), por isto, a sua existência pode ser contingente ( IV Def. 3).
Ainda assim, "esta" existência depende de condições "fortemente" determinadas, pois está compreendida entre limites temporais que lhe são designados pelo encadeamento necessário das causas e efeitos. Para além da ordem eterna das essências, é preciso considerar «a série das coisas singulares mutáveis» ou a ordem das existências onde se exprime aquilo a que se pode chamar a causalidade horizontal de Deus.
Apesar disto, se os limites da nossa existência (tal como as vicissitudes) são determinadas pelo encadeamento das causas segundas (Ética, II 30, dem. ), não é menos verdade que a força pelo qual cada ser preserva na existência é derivada da causa primeira, é uma determinada expressão do poder divino, da sua causalidade vertical. Por isto, é necessário entender que a essência de cada indivíduo está numa determinada expressão do poder infinito de Deus, mas se a essência não envolver a existência necessária, ela não é menos que uma participação da energia própria da essência divina (essentia actuosa), um esforço por preservar no ser (Ética, III 6,7).

relatora: Lia Neves

Thursday, November 09, 2006

Aulas 5-6 (12 de Outubro de 2006)

Abordando de forma sintetizada a importância que Martinho Lutero teve no século XVIII para o estabelecimento do conceito moderno do sujeito, ocupar-nos-emos seguidamente do racionalismo, a partir de uma consideração da filosofia de René Descartes.
Para a consideração da filosofia cartesiana procederemos à análise de uma das suas muitas obras, nomeadamente as “Meditações sobre a Filosofia Primeira”.
Relativamente a Martinho lutero, verificou-se, na sua obra “Sobre a Liberdade Cristã”, que este introduz uma distinção entre a fé e as obras, distinção essa pela qual ele se contrapõe à noção clássica de virtude enquanto prática e aperfeiçoamento do homem através das boas obras. Se os clássicos tinham entendido a possibilidade de o homem adquirir boas disposições, aperfeiçoando-se interiormente, através do cultivo exterior de determinadas práticas virtuosas, Lutero apresenta agora a fé como sendo um puro dom de Deus, determinando assim a alma do homem, a sua realidade interior, como uma realidade puramente interior ao homem, estando em contacto directo com Deus e não sendo de nenhum modo influenciada por constrangimentos corpóreos e pelas suas acções exteriores. Na perspectiva de Lutero, a fé não é uma virtude. E, não o sendo, ela não é nada de humano.
Sendo assim, Lutero apresenta duas afirmações paradoxais: o homem cristão é, por um lado, um sujeito absolutamente livre; e, por outro lado, esse mesmo homem é servo, vinculado. Apesar de estas duas afirmações serem, consideradas em si mesmas, incompatíveis, Lutero considera que estas podem ser compatibilizadas a partir de uma concepção dualista do Homem. Portanto, o homem é uma realidade complexa, no qual estão patentes duas dimensões: a corporal e a espiritual. Esta dualidade humana entre a alma e o corpo prende-se também, por outro lado, a um segundo dualismo: o da liberdade. A pessoa interior, que é possuidora de uma natureza espiritual, é essencialmente livre. É o homem interior, enquanto sujeito inteiramente livre, que, na sua relação directa com Deus, é animado pela fé enquanto dom de Deus. A pessoa exterior ou corpórea está sempre constrangida pela sua situação no mundo e pelas obras que essa sua situação no mundo lhe impõe. Nesse sentido, ela não é livre, embora uma tal ausência de liberdade não prejudique, no essencial, a liberdade interior e a fé de cada homem.
Portanto, mediante o que foi referido anteriormente, depreendemos que Lutero considera que não é importante o que exteriormente somos, porque isso não determina a liberdade. O que interessa é que, por mais difícil e servil que seja a condição exterior do homem, este conserve, no seu íntimo ou na sua dimensão interior, uma essencial liberdade.
Para Lutero, nenhuma obra exterior salva ou condena o homem e, por seu turno, das obras não pode resultar nenhuma interferência no plano espiritual. As boas obras não têm qualquer interferência ou eficácia na existência da fé no homem e, portanto, na sua salvação, mas a sua realização consiste apenas numa manifestação da boa disposição de Deus em relação a esse homem. Noutros termos: não é porque realiza boas obras que o homem é salvo e querido por Deus, mas, pelo contrário, se ele for eleito por Deus para a salvação, se ele for agraciado por Deus com o dom da fé, então ele fará inevitavelmente boas obras. As boas obras são consequências da fé, decorrem dela; isto é, o homem que tenha fé não pode deixar de fazer boas obras.
Esta concepção de Lutero de um homem dividido entre as dimensões interior e exterior constituirá aquilo a que se poderá chamar o pressuposto metafísico da Modernidade: o dualismo.
O dualismo próprio do pensamento moderno estabelece então, à partida, uma confrontação entre um sujeito interior e um mundo que lhe é exterior. E uma tal relação é, antes de mais, uma relação de domínio. Uma tal relação de domínio torna-se manifesta na configuração moderna da verdade: a certeza. Para a modernidade, ser "verdadeiro" é ser certo e, nesse sentido, seguro. Esta procura moderna da segurança torna-se patente nas duas grandes construções modernas: a ciência moderna e o Estado moderno. Por um lado, a ciência moderna constitui-se como uma fonte de progressiva dominação do mundo natural pelo homem. A física matemática moderna consiste na tentativa de tornar a natureza previsível e segura pelo homem. Por outro lado, o Estado soberano da modernidade é pensado como a instituição através da qual a vida dos homens se torna segura. Em ambos os casos, surge um sujeito que se torna cada vez mais seguro, seja diante do mundo natural, através da ciência, seja através do mundo social e dos outros, através da soberania do Estado moderno.

Procedendo à análise da obra “Meditações sobre a Filosofia Primeira” de Descartes, consideremos o seguinte passo:
Notei, há alguns anos já, que, tendo recebido desde a mais tenra idade tantas coisas falsas por verdadeiras, e sendo tão duvidoso tudo o que depois sobre elas fundei, tinha de deitar abaixo tudo, inteiramente, por uma vez na minha vida, e começar, de novo, desde os primeiros fundamentos, se quisesse estabelecer algo de seguro e duradoiro nas ciências” ( Meditação I, p.105)
Nesta passo, Descartes tenta patentear que o entendimento deve encontrar em si mesmo as verdades fundamentais, a partir das quais seja possível deduzir um edifício “seguro e duradouro” dos nossos conhecimento. Por isso, considera que, para construir este edifício, devemos partir de uma verdade absolutamente certa, indubitável acerca do qual não seja possível em absoluto duvidar
Mas, porque a razão me persuade logo não devo menos cuidadosamente coibir-me de dar o meu assentimento às coisas que não são plenamente certas e indubitáveis do que às abertamente falsas, para rejeitá-las todas basta que se me depare em uma delas qualquer razão de dúvida” (Meditação I, p.106)
Ele considera então que temos efectivamente de duvidar e eliminar tudo aquilo que se apresente ao nosso espirito como duvidoso e, por isso, considera que a primeira e a mais óbvia razão para duvidar dos nossos conhecimentos encontra-se no carácter equívoco daqueles conhecimentos que parecem ter origem nos sentidos
Sem duvida, tudo aquilo que até ao presente admiti como maximamente verdadeiro foi dos sentidos ou por meio dos sentidos que o recebi” (Meditação I, p.107)
Descartes considera que, se os sentidos nos induzem às vezes em erro, se estes nos enganam algumas vezes, poderão, mesmo que não o saibamos, enganar-nos sempre.
Porém descobri que eles por vezes nos enganam, e é de prudência nunca confiar totalmente naqueles que, mesmo uma só vez nos enganaram” ( Meditação I, p. 107).
Os sentidos, deste modo, não têm um fundamento absolutamente certo e indubitável. Deste modo, este primeiro argumento - o de que os nossos sentidos às vezes nos enganam, produzindo percepções equivocadas, e de que, portanto, as coisas podem não ser como parecem - leva Descartes a concluir que o mundo exterior pode não ser aquilo que parece.

Posteriormente, Descartes introduz uma segunda razão para duvidar: a impossibilidade de distinguir a vigília do sonho
“Com efeito, quantas vezes me acontece que, durante o repouso nocturno, me deixo persuadir de coisas tão habituais como que estou aqui, com o roupão vestido, sentado à lareira, quando, todavia, estou estendido na cama e despido” (Meditação I, p.108).
Portanto, também os sonhos nos mostram com frequência mundos de objectos com alguma veracidade; no entanto, ao despertarmos, descobrimos efectivamente que os mundos desses objectos não têm afinal uma existência real.
No entanto, apesar desta impossibilidade de distinguir o sono da vigília, que conduz à dúvida da existência das coisas e do mundo, para Descartes esta impossibilidade não parece afectar certas verdades como as matemáticas.
porque, quer eu esteja acordado quer durma, dois e três somados são sempre cinco e o quadrado nunca tem mais do que quatro lados, e parece impossível que verdades tão evidentes possam incorrer na suspeita da falsidade” ( Meditação I, p.110).
Ou seja: quer eu esteja acordado ou a sonhar, parece impossível que alguém seja enganado acerca de coisas tão obvias como o facto de “ dois mais três perfazerem cinco” ou “ um quadrado ter quatro lados”; logo, as verdades matemáticas e geométricas são evidentes e distintas e por isso, indubitáveis.

Finalmente, Descartes introduz um terceiro motivo de duvida, ou seja, a hipótese de um Deus Maligno
Todavia, está gravada no meu espírito uma velha crença, segundo a qual existe um deus que tudo pode e pelo qual foi criado tal como existo. Mas quem me garante que ele não procedeu de modo que não houvesse nem terra, nem céu…, e, que, no entanto, tudo isto me parecesse existir tal como agora?” ( Meditação I, p.110).
Portanto, ao imaginar a hipótese de um Deus enganador, Descartes considera que este nos faz com que nos enganaremos “ mesmo em relação àquelas coisas que pensamos melhor conhecer”.

Deste modo, e mediante o que foi refrido anteriormente, ou seja, se nem os sentidos, nem a matemática estão acima da duvida “o que é, então, que pode ser considerado verdadeiro?”. A primeira resposta que Descartes sugere é que a única coisa certa e indubitável é “que nada é certo”. Entretanto, Descartes percebe que, se ele duvida de tudo, há algo do qual não lhe é possível duvidar; ou seja, do facto de que ele está a duvidar, isto é, se ele está a pensar, num dado momento, então a sua existência é, naquele momento, absolutamente certa e indubitável “Eu sou, eu existo!”. Portanto, com esse enunciado Descartes acredita ter descoberto a sua primeira certeza, ou seja, ele existe todas as vezes que pensa, que duvida e que é enganado.
No entanto, ressalta que, apesar de ter certeza de que existe, tal não implica que tenha certeza de que tem um corpo (res extensa). A única coisa de que pode ter certeza é de que existe enquanto ser pensante, enquanto res cogitans.
Posteriormente, Descartes afirma a intencionalidade do pensamento: o pensar pensa sempre Ideias; por exemplo, na afirmação “Eu penso, eu existo”, o pensamento é como uma “actividade”, um acto de pensar, e o “eu” torna-se o própria objecto desse mesmo pensar enquanto acto.
Seguidamente, Descartes distingue três tipos de ideias:
a) as Ideias adventícias: são aquelas que parecem provir da nossa experiência externa,
b) as Ideias factícias: são as ideias que dependem do nosso arbítrio, ou seja, são as ideias que a mente constrói a partir de outras ideias e
c) as Ideias inatas: que são aquelas que nascem com o “eu” e que, por isso, são intrínsecas ao próprio espírito humano.
Acontece que, entre estas Ideias inatas, Descartes descobre a ideia de infinito, a qual identifica como a ideia de Deus; ou seja, o espírito entende a Ideia de Deus que é intrínseca ao próprio espírito. A ideia de Deus como ser infinito é então uma ideia inata ao próprio espírito. O espírito pensa e não pode deixar de encontrar nele mesmo a ideia de infinitude.
Assim, se o “eu” finito pensa o infinito e se as Ideias pensadas pelo “eu” são realidades enquanto objectos do espírito, são coisas, são “res”, tendo assim uma realidade objectiva (uma realidade enquanto objectos do pensamento), tal quer dizer que na ideia de infinito é pensada uma ideia cuja realidade objectiva não pode ser causada pela realidade formal do sujeito. Portanto, se a realidade objectiva da ideia de infinito ultrapassa a própria realidade formal do sujeito finito que a pensa, tal quer dizer que se torna necessário afirmar um realidade cuja realidade formal contenha tanta realidade quanto a realidade que está contida na própria realidade objectiva da ideia de infinito. Deste modo, só um ente infinito (Deus) pode ter posto em mim a própria ideia de infinito; ou seja, só a existência de um sujeito infinito vai permitir em mim a ideia de infinito. Descartes pretende assim provar a realidade de Deus enquanto res infinita. E será esta ideia de uma existência infinita que vai eliminar a hipótese de um Deus Maligno, na medida em que um ser perfeito, enquanto perfeito, não pode enganar.
relatora: Bárbara Santos

Monday, September 25, 2006

Aula 3-4 (28 de Setembro de 2006)

Através do texto de 1520 de Lutero, Sobre a Liberdade Cristã, é possível observar o modo como se começa a esboçar, na sua peculiaridade, o conceito moderno de sujeito. Isto espelha-se na primeira frase: “[a] muitos a fé cristã parece coisa fácil, e não poucos também a contam entre as virtudes”. Ora, a virtude, na linha da tradição greco-medieval, é uma qualidade cultivada em oposição àquilo que em nós se encontra naturalmente. Neste sentido, não temos a potência (dynamis) das virtudes. Esta adquire-se através do acto, e é a repetição do acto (energeia) que possibilita em nós a aquisição de como que uma "segunda natureza", determinada pela disposição de carácter ou a potência desses actos. No fundo, as nossas acções, as obras, aquilo que acontece externamente, tem consequências no nosso carácter, repercute-se naquilo que somos interiormente, na nossa intimidade, no âmbito do sujeito que somos; i. e., o mundo exterior interfere na nossa própria constituição. Ao aplicar esta "doutrina" aristotélica da virtude ao catolicismo medieval, a Igreja defendia que o exercício de uma prática interferia com o destino da alma e que as boas obras, transformando as almas, tornavam, no fundo, essas mesmas almas agradáveis a Deus.
É contra esta noção de uma interferência das obras no destino da alma humana que Lutero se manifesta, no contexto da sua contestação à compra de indulgências papais pelos fiéis. Para ele, a fé não deriva da virtude nem de uma prática que a procure enraizar. A fé é uma coisa diferente: depende de Deus e, se depende de Deus, não pode ser considerada uma virtude, visto que a virtude é uma qualidade humana. Mas, se a fé, na sua realidade, é diferente, visto que depende directamente da graça de Deus na sua relação com o homem, então como é que o homem é estruturado para recebê-la?
Esta pergunta guia Lutero a duas teses antagónicas: “1) O cristão é um senhor libérrimo sobre tudo, a ninguém sujeito. 2) O cristão é um servo oficiosíssimo de tudo, a todos sujeito”.
Estas duas teses só são compatíveis se o homem for diferenciado em dois planos: por um lado, uma realidade interior, um espírito ou alma; por outro, uma realidade externa, um corpo. Existindo uma separação radical destas duas dimensões, somos, no entanto, uma coincidência destas duas realidades. Estamos portanto na presença de um dualismo.
Esta tese reforça a distinção entre liberdade (a pessoa interior é livre, independentemente da sua existência exterior, isto é, da sua condição corpórea e da sua situação socio-política); e a não-liberdade (a situação da pessoa exterior, que é de natureza corporal). A única dimensão onde o homem se pode salvar ou condenar, na sua dimensão interior e essencial, é a fé; não há nenhuma obra que interfira no plano espiritual. Neste sentido, a alma é integralmente livre, i. e., todos os seres humanos enquanto pessoas espirituais são iguais. Tal resulta numa igualdade de todos, onde, no fundo, todos são sacerdotes e não há quem tenha relações privilegiadas com Deus (neste sentido, Lutero nega a existência de um clero como estado diferenciado e proclama o sacerdócio de todos os fiéis).
Mas, e as obras, a realidade exterior? Visto que a fé se ganha através de um acesso directo e espiritual a Deus, que sentido têm, então, as acções no mundo exterior?
Lutero responde que, se fossemos completamente espirituais, viveríamos satisfeitos com a fé, mas visto que isso não acontece, que temos uma realidade exterior, uma pessoa exterior, a pessoa irá fazer corresponder à sua fé obras boas, porque só uma pessoa com fé pode fazer boas obras, enquanto quem não a tem só pode fazer más acções.
Em conclusão: Lutero defende que a característica da pessoa interior é o relacionar-se única e exclusivamente com Deus, e a liberdade deste relacionamento constitui-se na relação directa da lama ou do homem interior com Deus. A alma, pelo facto de ter fé, é segura: a sua salvação adquire, através da fé, um grau de certeza e de segurança. A fé traz a certeza da salvação. Esta fé não aumenta nem diminui com as obras praticadas, mas as boas obras derivam necessariamente da fé e, assim, podemos conhecer a fé de uma determinada pessoa através das suas obras. As suas boas obras não são eficazes para produzir a salvação, pois só a fé salva; mas elas são, no entanto, um sinal e um indício da salvação.
relator: Luís Inácio

Monday, September 18, 2006

BIBLIOGRAFIA FUNDAMENTAL

Descartes, Méditations métaphysiques, ed. Adam & Tannery, vol. IX, Paris, Vrin [trad. port. : Meditações de filosofia primeira, Coimbra, Almedina]
Espinosa, Ethica: [trad. port.: Ética, Lisboa, Relógio d’Água]
Kant, Kritik der reinen Vernunft [trad. port.: Crítica da Razão Pura, Lisboa, Gulbenkian]
Kant, Kritik der praktischen Vernunft [trad. port: Crítica da Razão Prática, Lisboa, ed. 70]
Kant, Kritik der Urteilskraft [trad. port.: Crítica da Faculdade do Juízo, Lisboa, INCM]
Leibniz, Principes de la nature et de la grace [trad. port. : Princípios da natureza e da graça, Obras Escolhidas, Lisboa, Horizonte]
Leibniz, Monadologie [trad. port. : Monadologia, Obras Escolhidas, Lisboa, Horizonte]
Lutero, Von der Freiheit eines Christenmenschen [trad. port.: Da liberdade cristã, in Escritos seletos de Martinho Lutero, Tomás Müntzer e João Calvino (org. Luis Alberto De Boni), Petrópolis, Vozes]
Malebranche, De la recherche de la vérité, Paris, Vrin

PROGRAMA DE FILOSOFIA MODERNA

IParte: O sujeito moderno como sujeito livre
a) A passagem para um sujeito livre e desvinculado do mundo
b) O homem diante do mundo

II PARTE: O dualismo fundamental e o problema da liberdade
a) O dualismo cartesiano: o eu como sujeito. As objecções a Descartes e a solução ocasionalista para o problema da relação alma-corpo
b) A liberdade em Espinosa
c) A metafísica de Leibniz

III PARTE: A filosofia crítica de Kant
a) A estrutura transcendental do sujeito
b) A liberdade como fundamento da passagem do teórico para o prático
c) O projecto de constituição de um mundo moral