Introdução à Filosofia Moderna

Instituto de Estudos Filosóficos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

Monday, September 25, 2006

Aula 3-4 (28 de Setembro de 2006)

Através do texto de 1520 de Lutero, Sobre a Liberdade Cristã, é possível observar o modo como se começa a esboçar, na sua peculiaridade, o conceito moderno de sujeito. Isto espelha-se na primeira frase: “[a] muitos a fé cristã parece coisa fácil, e não poucos também a contam entre as virtudes”. Ora, a virtude, na linha da tradição greco-medieval, é uma qualidade cultivada em oposição àquilo que em nós se encontra naturalmente. Neste sentido, não temos a potência (dynamis) das virtudes. Esta adquire-se através do acto, e é a repetição do acto (energeia) que possibilita em nós a aquisição de como que uma "segunda natureza", determinada pela disposição de carácter ou a potência desses actos. No fundo, as nossas acções, as obras, aquilo que acontece externamente, tem consequências no nosso carácter, repercute-se naquilo que somos interiormente, na nossa intimidade, no âmbito do sujeito que somos; i. e., o mundo exterior interfere na nossa própria constituição. Ao aplicar esta "doutrina" aristotélica da virtude ao catolicismo medieval, a Igreja defendia que o exercício de uma prática interferia com o destino da alma e que as boas obras, transformando as almas, tornavam, no fundo, essas mesmas almas agradáveis a Deus.
É contra esta noção de uma interferência das obras no destino da alma humana que Lutero se manifesta, no contexto da sua contestação à compra de indulgências papais pelos fiéis. Para ele, a fé não deriva da virtude nem de uma prática que a procure enraizar. A fé é uma coisa diferente: depende de Deus e, se depende de Deus, não pode ser considerada uma virtude, visto que a virtude é uma qualidade humana. Mas, se a fé, na sua realidade, é diferente, visto que depende directamente da graça de Deus na sua relação com o homem, então como é que o homem é estruturado para recebê-la?
Esta pergunta guia Lutero a duas teses antagónicas: “1) O cristão é um senhor libérrimo sobre tudo, a ninguém sujeito. 2) O cristão é um servo oficiosíssimo de tudo, a todos sujeito”.
Estas duas teses só são compatíveis se o homem for diferenciado em dois planos: por um lado, uma realidade interior, um espírito ou alma; por outro, uma realidade externa, um corpo. Existindo uma separação radical destas duas dimensões, somos, no entanto, uma coincidência destas duas realidades. Estamos portanto na presença de um dualismo.
Esta tese reforça a distinção entre liberdade (a pessoa interior é livre, independentemente da sua existência exterior, isto é, da sua condição corpórea e da sua situação socio-política); e a não-liberdade (a situação da pessoa exterior, que é de natureza corporal). A única dimensão onde o homem se pode salvar ou condenar, na sua dimensão interior e essencial, é a fé; não há nenhuma obra que interfira no plano espiritual. Neste sentido, a alma é integralmente livre, i. e., todos os seres humanos enquanto pessoas espirituais são iguais. Tal resulta numa igualdade de todos, onde, no fundo, todos são sacerdotes e não há quem tenha relações privilegiadas com Deus (neste sentido, Lutero nega a existência de um clero como estado diferenciado e proclama o sacerdócio de todos os fiéis).
Mas, e as obras, a realidade exterior? Visto que a fé se ganha através de um acesso directo e espiritual a Deus, que sentido têm, então, as acções no mundo exterior?
Lutero responde que, se fossemos completamente espirituais, viveríamos satisfeitos com a fé, mas visto que isso não acontece, que temos uma realidade exterior, uma pessoa exterior, a pessoa irá fazer corresponder à sua fé obras boas, porque só uma pessoa com fé pode fazer boas obras, enquanto quem não a tem só pode fazer más acções.
Em conclusão: Lutero defende que a característica da pessoa interior é o relacionar-se única e exclusivamente com Deus, e a liberdade deste relacionamento constitui-se na relação directa da lama ou do homem interior com Deus. A alma, pelo facto de ter fé, é segura: a sua salvação adquire, através da fé, um grau de certeza e de segurança. A fé traz a certeza da salvação. Esta fé não aumenta nem diminui com as obras praticadas, mas as boas obras derivam necessariamente da fé e, assim, podemos conhecer a fé de uma determinada pessoa através das suas obras. As suas boas obras não são eficazes para produzir a salvação, pois só a fé salva; mas elas são, no entanto, um sinal e um indício da salvação.
relator: Luís Inácio

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