Introdução à Filosofia Moderna

Instituto de Estudos Filosóficos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

Saturday, December 23, 2006

Aula 11-12

A Ética de Espinosa começa por demonstrar algumas definições que preparam a de Deus, ou seja, prepara a definição de causa de si, de substância, de atributo e de modo. A estas se acrescentarão a definição de liberdade e eternidade.
Partindo do axioma 1 que se segue ao enunciado «Tudo o que existe, existe em si ou noutra coisa», é necessária uma explicação. Diz-se noutra coisa (in alio) tudo o que não pode existir de outro modo que não seja como atributo de um sujeito, a título de qualidade ou de quantidade, de maneira de ser em geral; é dito (in se) o que só pode ser sujeito e nunca atributo, o que não é uma maneira de ser, mas propriamente um ser (um homem, uma pedra e não a cor ou o movimento).
Espinosa reservou o nome de atributo para o que Descartes considerou como o atributo principal; os outros atributos ou maneiras de ser, qualidades ou afecções, Espinosa denominou modos. Ao contrário de Descartes, que considera a extensão e o pensamento como os atributos de duas espécies de substâncias (as substâncias pensantes ou espíritos, as substâncias extensas ou os corpos), Espinosa considera a extensão e o pensamento como dois atributos da única substância. A noção de substância só se aplica propriamente a Deus, ao ser que existe por si próprio (ens a se). No entanto, como entre coisas criadas há motivo para distinguir os seres e as maneiras de ser, então designa-se ordinariamente sob o nome de substância, em oposição ao atributo ou acidente, o qual só pode existir num sujeito (in alio), o próprio sujeito, que não existe noutra coisa, mas em si (in se). Assim sendo, a noção "espinosista" de substância resulta da rejeição desta ambiguidade, ou seja, para Espinosa não existe ens in se, ou ser em si, mas só o ser por si (ens a se). Como vimos em Espinosa:
«Por substância, entendo o que existe em si e por si é concebido (quod in se est per se concipitur); quer dizer aquilo cujo conceito não carece de conceito de uma outra coisa, a partir do qual deva ser formado» (Ética, I, def. III). Neste sentido, a substância é concebida por Espinosa como o absoluto, o incondicionado, o que não depende de mais nada; o conceito de substância reduz-se ao de causa sui que Descartes aplicou a Deus e que constitui o objecto da primeira definição da Ética : « Por causa de si entendo aquilo cuja essência envolve a existência; ou por outras palavras, aquilo cuja natureza não pode ser concebida senão como existente». Neste seguimento se Deus é concebido como absoluto ou causa de si, resulta daqui que Deus existe necessariamente. Então, como se deve conceber Deus?
«Por Deus, diz Espinosa, entendo um ser absolutamente infinito, quer dizer, uma substância constituída por uma infinidade de atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita». Surge daqui uma das questões mais difíceis do "espinosismo": como se define o atributo para Espinosa?
«Por atributo, diz ele, entendo o que o entendimento percebe de uma substância como constituindo a essência dela». Esta definição pode explicar-se pela consideração do atributo principal em Descartes. A extensão, atributo principal da substância corporal, faz-nos conhecer a sua essência. Por isto, podemos dizer que o corpo é uma substância extensa e que a extensão constitui a natureza ou a essência dos corpos. Do mesmo modo, (em Espinosa), a substância é concebida por si, mas não é conhecida por nós, percebida pelo nosso entendimento, a não ser nos seus atributos. Então, que atributos são?
De tudo o que podemos conhecer, só a extensão e o pensamento (que são considerados em Descartes como atributos principais, um da substância corporal e outro da substância espiritual), podem ser para Espinosa atributos da substância. No entanto, o atributo distingue-se dos modos ou afecções da substância em virtude de ser concebido por si «cada um dos atributos de uma mesma substância, diz ele, deve ser concebido por si». Assim sendo, os corpos definem-se pela figura e pelo movimento, que são modos da extensão, mas a extensão não se pode conceber a partir de uma coisa diferente dela, logo deve ser concebida por si. Da mesma maneira, a ideia é um modo, uma determinação do pensamento, mas o pensamento é um atributo também concebido por si. Neste sentido, se é concebido por si, o atributo distingue-se dos modos e assemelha-se à substância, que é em si e concebida por si. Apesar disto, não se identifica com ela porque não subsiste em si.
Pela definição da substância resulta que existe necessariamente e por consequência é eterna e infinita, pois o que é absolutamente é "sem limites" (I 8, escólio 1). Neste sentido, se o atributo é concebido por si é também infinito: os corpos determinam-se na extensão, têm limites na extensão, mas a própria extensão não pode ter limites; o mesmo acontece com o pensamento. Assim, a extensão e o pensamento são infinitos (cada um no seu género), mas não são absolutamente infinitos. Ou seja, a extensão não é o pensamento e o pensamento não é a extensão; exteriormente a cada um há outra coisa diferente e por isso nenhum deles é absolutamente infinito, nenhum equivale à substância. (Ética, I, Def. 6, explicação (…) ao que somente é infinito no seu género podemos negar uma infinidade de atributos; mas ao que é absolutamente infinito, pertence à sua essência tudo o que exprime a essência e não envolve qualquer negação).
É por isto que, para Espinosa, a extensão e o pensamento não são substâncias (como pensava Descartes), mas atributos da substância única, infinita. É neste sentido que Deus é o ser absolutamente infinito, no qual está o pensamento infinito e a extensão infinita que são ambos atributos infinitos. Sendo Deus concebido como infinito, uma infinidade de atributos infinitos se devem encontrar n'Ele (I 10, Escólio). Assim, não seria absolutamente infinito se não tivesse outros atributos além da extensão e do pensamento, mas só o podemos conhecer por "estes dois" (ESPINOSA, carta 64). Assim sendo, temos de considerar que o nosso entendimento finito não poderia perceber todos os atributos da substância infinita.
Neste sentido, ou seja, da própria definição de Deus, segue-se que Ele existe. Se dissesse que Deus não existe, não o estaria a conceber como substância, pois o existir pertence ao que é substância. Assim, se Deus é substância, existe necessariamente e por isso é infinito (na existência necessária e absoluta não pode haver limites; por isto, Deus é o ser absolutamente infinito). Se considerarmos o carácter infinito, surge outra prova da existência de Deus ou, mais precisamente, a necessidade da sua existência aparece sob outro aspecto, ou seja, aparece como uma conclusão lógica, mas como efeito da sua natureza infinita. Deste modo, Deus existe porque se é concebido como infinito nada se pode opor à sua existência, impedindo-O de existir (Ética, I 11, Dem.; escólio).
Perante a consideração da infinitude, apesar de ser deduzida da definição de substância e aparecer como consequência lógica da essência, a prova ontológica toma um novo aspecto que "foge" à objecção de formalismo.
Recapitulando, Deus existe necessariamente, pois tem um poder infinito de existir, existe porque Ele é causa de si. Definindo logicamente, causa de si é aquilo cuja essência envolve a existência (é uma essência donde se tira a existência; então não é só um conceito formal, mas um puro objecto de pensamento).
Analisando o conceito de causa de si, é evidente que se Deus é concebido como o ser necessário, a sua essência deve ser concebida como potência, de maneira que a potência de Deus é a sua própria essência. Se desta essência deduzimos a sua existência, então a essência não se pode reduzir a um objecto de pensamento. Deste modo, a essência é potência, não no sentido de possibilidade, mas no sentido de poder actuante. Como dizia Espinosa: essentia actuosa (Ética, II 3, escólio). Se a essência se concebe deste modo é claro que não se reduz a objecto ideal, "um possível no entendimento". Se o argumento ontológico é válido, é porque "(…) em Deus a essência não se distingue da existência, posto que n'Ele , sem a existência, a essência não poderia ser concebida".Continuando, os seres particulares, ou "os modos", podem-se conceber sem ser, pois são concebidos como determinações de um atributo infinito. Por exemplo, um círculo pode-se conceber sem existir desde que tenha a ideia "necessária" da extensão. Aqui põe-se um problema: como se concebia Deus ou a substância se não existissem? Como se formaria o conceito de absoluto se o absoluto não se impusesse ao meu entendimento como uma exigência transcendente?
Perante isto, dir-se-ia que negar que uma realidade corresponde ao conceito de haver um princípio absoluto, onde se fundam o seu sentido e valor, será negar toda a verdade e, então, renunciar a toda a inteligibilidade. Assim, a existência de Deus, ou da substância, assim como a sua essência, impõem-se ao nosso espírito como uma verdade eterna (I 8, escólio 2,20; cor.1)
Deve entender-se que a essência de Deus não é como a do círculo, uma determinação particular de um atributo infinito, a que corresponde uma existência possível; exprime a própria existência infinita. Então, a existência de Deus e a sua essência são uma e mesma coisa, por isso se diz que o Deus de Espinosa é como o do Êxodo (III 14).
Será necessário ter em atenção que quando Espinosa nos diz que a existência de Deus, tal como a sua essência, é uma verdade eterna, devemos entender a eternidade de Deus de um modo diferente da das essências imutáveis (às quais se relacionam as verdades necessárias da geometria). Deve então compreender-se que para lá da eternidade das essências, ou dos possíveis no entendimento, a eternidade de Deus se concebe como a existência absoluta. ("Esta" não é só o ser objectivo e intemporal da verdade, nem "tão – pouco", a factiori, uma duração sem começo nem fim.) (Ética I Def. 8, explicação).
Assim a eternidade de Deus entende-se como a energia inesgotável de um princípio transcendente, donde derivam o ser e a verdade e onde se funda o seu acordo.
Avançando para as coisas singulares e vendo a sua essência eterna e a sua existência temporária, começo por exemplificar como Deus, sendo uma substância única, não pode existir nem se conceber nenhuma substância ( I 14). Daqui segue-se que tudo o que existe só pode existir n'Ele: nada pode existir nem ser concebido sem ele (I 15). É preciso ver que as coisas singulares são "só" modos através dos quais os atributos divinos se exprimem de uma forma determinada. Do mesmo modo, os corpos são apenas determinações particulares da extensão, atributo divino, da mesma maneira que os espíritos são modos do pensamento infinito. Isto não quer dizer que as coisas criadas sejam identificadas com Deus, pois dizer que Este é extenso não implica que seja corporal. A extensão enquanto atributo divino é infinita e indivisível, mas a extensão dividida em corpo é a extensão representada na imaginação, ou seja, a extensão diversificada pelo movimento e repouso, que são um modo infinito, ou melhor, um efeito imediato da potência infinita que se exprime no atributo. Neste sentido, é por intermédio do movimento e repouso que podemos distinguir os corpos, que são modos finitos. Deste modo, as coisas criadas, ou seja, os espíritos e os corpos, não se identificam com a substância de que são os modos.
Deus, sendo causa de tudo, é substância única e todas as coisas que produz estão em si: " Ele é causa imanente de todas as coisas, e não (causa) transitiva" ( I 18 , 24). Talvez para continuar a explorar o tema seja necessária a leitura da carta 12 que Espinosa escreve a Luís Meyer. Daqui se entenderá melhor que a existência de Deus não é a existência empírica, mas a essentia ou ipsum esse (Ética, II Def. 5 ).
Assim se entende que as coisas singulares não são causa de si, são causadas por Deus; não pertencem à Natureza naturante (Deus e seus atributos), mas à Natureza naturada. Talvez aqui se faça uma distinção:
Natureza naturante: aquela que é criadora, o que existe em si e é concebida por si).
Natureza naturada: tudo aquilo que resulta da natureza de Deus.
Deus é causa eficiente, não só da sua existência, mas também da sua essência, mas tendo as coisas singulares uma essência (na teologia tradicional) significa que elas são concebidas no entendimento de Deus antes de serem produzidas pela sua vontade. Perante isto, Deus tem uma vontade livre que origina a criação de uma escolha entre possíveis; no entanto, esta representação de Deus é rejeitada por Espinosa como antropomórfica. Neste sentido, as coisas que Deus produz derivam de si e unicamente em virtude das leis da sua natureza. Então, Deus é livre porque nada exterior a Ele O constrange (Ética, I 16, 33, 17) e ( I 29, escólio). Assim, as coisas singulares têm uma essência no sentido em que não são combinações fortuitas. Deve entender-se que Espinosa exclui a finalidade intencional e a Providência divina, mas não a organização da natureza. Por exemplo, os corpos distinguem-se uns dos outros através do movimento e do repouso, na medida em que se conservam através das alterações que sofrem, assegura a cada um uma natureza permanente e uma individualidade. Deste modo, o universo é constituído por uma hierarquia de formas e a natureza aparece como um organismo (Ética, II, escólio depois do lema 7, antes dos postulados e depois da proposição 14). A esta organização permanente se designa como facies totius universi (carta 64), ou seja, é um modo intermediário entre o movimento e repouso, modo infinito imediato e as coisas singulares, (estas que são modos finitos, sujeitos de mudança e cuja existência é limitada no tempo, mas a essência é compreendida na organização eterna do universo), são modos eternos dos atributos divinos.
Espinosa não exclui o entendimento divino, mas recusa-se a considerá-lo como anterior às coisas, ou seja, tomar as coisas como produções do entendimento. Por outro lado, também não é posterior às coisas, tal como seria o nosso entendimento segundo a opinião corrente. Assim "ele" está em simultaneidade com as coisas, ou seja, da natureza eterna e infinita de Deus resulta que as ideias se deduzem umas das outras no entendimento segundo a mesma ordem e com a mesma necessidade com que as coisas se produzem na natureza ( I 17, escólio; II 3, escólio, 6, escólio).
Os modos do pensamento e os modos da extensão encadeiam-se segundo a ordem, formando duas séries rigorosamente paralelas (II 7). Esta correspondência é precisa para que o conhecimento, que se constitui segundo as exigências intrínsecas e as leis necessárias do pensamento, não seja uma construção abstracta, mas nos descubra a realidade.
Por isto, o entendimento divino, da mesma maneira que a organização eterna da natureza, é apenas um modo onde estão compreendidas as ideias das coisas, mas as ideias não são simples possíveis, ou seja, são essências reais, modos finitos. No "espinosismo", as ideias são tão reais como eternas; então, há uma ideia eterna do indivíduo Espinosa que não é só um objecto eterno de conhecimento, mas Espinosa eternamente conhecedor, um modo eterno do pensar, compreendido na eternidade do entendimento divino, ao qual corresponde um modo eterno da extensão, de que Espinosa era (em vida) a manifestação visível e temporal.
O corpo é eterno como a alma, sendo a alma e o corpo uma e a mesma coisa, um mesmo indivíduo, uma mesma essência real, que se exprime em dois atributos diferentes (III 2, escólio). Aqui deve notar-se uma diferenciação, pois se o corpo (que é singular), considerado na sua essência é eterno, a alma, (em contrapartida, durante a existência temporal) é constituída por ideias que são eternas, ideias que correspondem às modificações corporais e às vicissitudes da vida empírica. Deste modo, parece que as coisas singulares, os modos finitos, têm uma dupla existência, uma existência empírica, uma duração que é uma sucessão de fenómenos, e o ser eterno de uma essência onde se exprime (de uma determinada maneira) o poder infinito que se manifesta nos atributos divinos (Ética, V 29, escólio). Por isto, Deus é causa (a um tempo) do ser eterno dos modos e da sua existência na duração, apesar desta causalidade dupla se manifestar de duas maneiras diferentes. Assim, os modos finitos que são considerados na sua essência deduzem-se da natureza infinita de Deus, ou seja, através dos modos infinitos imediatos (ex.: o movimento e o repouso) forma-se em cada atributo um modo infinito mediato no interior do qual os modos finitos se definem "hierarquicamente". Deste modo, da necessidade de uma natureza divina, procede através de uma causalidade uma «série das coisas fixas e eternas». Ainda assim, os modos finitos que são eternamente compreendidos no entendimento divino e na eternidade, não têm (na experiência e história) existência necessária, mas é possível que "um dado homem" definido na sua essência individual, exista ou não neste momento ( II Axioma 1), por isto, a sua existência pode ser contingente ( IV Def. 3).
Ainda assim, "esta" existência depende de condições "fortemente" determinadas, pois está compreendida entre limites temporais que lhe são designados pelo encadeamento necessário das causas e efeitos. Para além da ordem eterna das essências, é preciso considerar «a série das coisas singulares mutáveis» ou a ordem das existências onde se exprime aquilo a que se pode chamar a causalidade horizontal de Deus.
Apesar disto, se os limites da nossa existência (tal como as vicissitudes) são determinadas pelo encadeamento das causas segundas (Ética, II 30, dem. ), não é menos verdade que a força pelo qual cada ser preserva na existência é derivada da causa primeira, é uma determinada expressão do poder divino, da sua causalidade vertical. Por isto, é necessário entender que a essência de cada indivíduo está numa determinada expressão do poder infinito de Deus, mas se a essência não envolver a existência necessária, ela não é menos que uma participação da energia própria da essência divina (essentia actuosa), um esforço por preservar no ser (Ética, III 6,7).

relatora: Lia Neves

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